18 de set. de 2012

Transexuais: o drama de homens que nasceram em corpo de mulher

Por Mariana Sanches. Fotos Gabriel Rinaldi

 O guarda civil Márcio Régis Vascon se formou em Direito. Na colação de grau pode ser chamado pelo nome social

O coração de Márcio Régis Vascon batia acelerado sob a beca preta, em uma noite quente de dezembro passado. Às vésperas de completar 40 anos, faltava a Régis dar apenas alguns passos para realizar um sonho interrompido vinte anos antes. À beira do palco, sob o olhar atento de quase 500 pessoas, no anfiteatro da Universidade Paulista, em Campinas, ele estava prestes a receber o canudo de Bacharel em Direito. As batidas desenfreadas no peito, no entanto, não eram só de alegria. Eram de aflição. Com o rosto forrado de barba, o cabelo cortado rente ao crânio, o rosto anguloso e a voz grossa, nada em Régis fazia lembrar o universo feminino. Mas, ele nasceu mulher. Em seus documentos, até hoje, consta o nome de batismo — Márcia Regina — dado pela mãe. Naquela noite, havia prometido a si mesmo que não subiria ao palco se fosse chamado de Márcia. Acionou a Defensoria Pública do Estado de São Paulo para que tivesse direito de ser chamado por seu nome social. Um ofício determinava que a faculdade o respeitasse. Quando seu nome — Márcio Régis — foi anunciado, todos os colegas levantaram para aplaudi-lo. Ao longo dos cinco anos de curso, Régis não lutou só pelo grau de Bacharel em Direito. Lutou pela própria identidade.
Leia mais: Joanna Maranhão garante que tentará de novo no Rio 2016 e relembra abusos sexuais
Régis é um homem transexual.­ Diferente da homossexualidade, a transexualidade é descrita pela ­Organização Mundial da Saúde ­como um transtorno de identidade­ de gênero, em que o sexo biológico­ não condiz com a identidade de gênero da pessoa. A condição de Régis é conhecida pela sigla FTM (Female To Male, ou feminino para masculino). É um fenômeno mais raro do que aquele em que alguém nascido homem deseja transformar-se em mulher, caso da modelo brasileira Lea T. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, há uma mulher transexual a cada 30 mil pessoas e apenas um homem transexual a cada 100 mil.
Embora a transexualidade seja um fenômeno mundialmente reconhecido desde a década de 80, o Brasil avançou pouco no respeito aos direitos dos transexuais­. Enquanto a Argentina aprovou, em maio, uma lei que permite que o nome, o gênero e a foto de documentos de identidade sejam modificados por qualquer pessoa maior de 18 anos que não se reconheça no gênero registrado na certidão de nascimento, aqui, essa decisão ainda cabe ao juiz e às suas convicções. Não há marco legal ou jurisprudência em relação ao resultado de processos de troca de nome. As ações chegam a levar três anos, ou mais, para ser julgadas. E, frequentemente, o resultado é negativo. “Infelizmente, há uma influência forte dos preceitos judaico-cristãos no Judiciá­rio, o que tem impedido decisões mais progressistas”, afirma o juiz Roberto Coutinho Borba. Em 2009, em Bagé (RS), o juiz Borba deu uma das raras decisões favoráveis à troca de nome. Uma cabeleireira, conhecida na cidade como Verônica, pôde ter seu nome de registro — Antônio — substituído pelo­ nome feminino. “Ela ainda não tinha sido operada para mudar de sexo e, por isso, os meus colegas não autorizaram a troca­ de nome­. Mas ela já tinha feições femininas­ e sua vida estava completamente parada­ por conta do nome. Ela não conseguia comprovar sua identidade, abrir conta em banco,­ estudar­, porque seus documentos de homem não condiziam com suas características femininas”, afirma Borba.
“A influência da religião no judiciário impede decisões a favor da troca de nome” Roberto Coutinho Borba, juiz de Direito
EXCLUSÃO Os juízes que optam por não autorizar a troca de nome argumentam que, sem a cirurgia de mudança de sexo, todas as transformações físicas são reversí­veis. Para eles, alterar os documentos nessa condição seria facilitar o crime de falsidade ideológica, em que uma pessoa se faz passar por outra. Na prática, a opção dos juí­zes tem excluído milhares de pessoas de escolas, faculdades, do mercado de trabalho, enfim, da ­cidadania. Isso é especialmente verdade para os homens transexuais.
No caso das mulheres trans, o desejo de se transformar costuma ser mais facilmente satisfeito. Além de usar hormônios femininos e de implantar silicone para dar forma aos seios, elas têm à disposição uma técnica cirúrgica segura para criação de vagina. O Sistema Único de Saúde (SUS) realiza o procedimento gratuitamente. Em clínicas particulares, a cirurgia de neovagina pode custar até R$ 40.000. Cenário muito diferente é aquele encontrado por homens transexuais. Se, por um lado, 100% deles sonham em ter um pênis funcional e em dimensões normais, por outro, dos cinco entrevistados por esta reportagem, nenhum se disse disposto a fazer uma faloplastia. Esta consiste num conjunto de complicadas interveções cirúrgicas que promete formar um pênis de até dezoito centímetros de comprimento. Primeiro, um tubo de material cirúrgico é implantado no braço do paciente. Durante alguns meses, tecidos e enervações serão formados em torno desse tubo. Uma nova cirurgia será feita para retirá-lo do braço. Os médicos, então, usarão a pele da superfície de uma das coxas do paciente para envolver o tubo. A pele da planta do pé serve para desenhar a glande. Tudo será incorporado à genitália do trans. Embora o Hospital das Clínicas de São Paulo já realize a faloplastia, a técnica é considerada experimental. O pênis criado a partir da cirurgia raramente é capaz de gerar orgasmos, não costuma ficar ereto e, em alguns casos, é rejeitado pelo organismo, levando à necrose de toda a genitália e de parte do sistema urinário. O pós-operatório delicado pode levar à morte.
+ Leia mais: Cabeças marcadas pelo tráfico: "código penal" de algumas favelas cariocas castiga mulheres raspando seus cabelos
Diante dos enormes riscos envolvidos e da posição inflexível de alguns juízes, os homens trans se viram num limbo jurídico. A ação da Defensoria Pública começa a desfazer esses nós junto às faculdades e às empresas onde os transexuais estão. É uma maneira de fazer com que eles existam e sejam respeitados em seu cotidiano, entre seus colegas de classe, chefes e subordinados. “Há um decreto estadual em São Paulo que recomenda o uso do nome social em repartições públicas. Com base nele, estamos pedindo a mudança do tratamento dos trans nas faculdades e empresas privadas. Se há resistência, ameaçamos abrir um processo judicial”, afirma a defensora Maíra Diniz. “Não importa se o trans é operado ou não, isso é apenas um detalhe. Mas o nome não é um detalhe. O direito à identidade independe do sexo biológico. Trocar o nome de alguém em documentos não é difícil e não traz insegurança. Se fosse assim, o ex-presidente Lula não poderia ter incluído o apelido no nome de registro.”
PRECONCEITO Foi graças à atuação da Defensoria que Régis teve o reconhecimento público que tanto esperava no dia da sua colação de grau. Expulso de casa pela mãe aos 23 anos, assim que ela descobriu que ele tinha uma namorada, Régis trabalhou como babá e como servente de pedreiro, até passar no concurso para Guarda Civi­l em Campinas, São Paulo. Há seis anos, começou sua transformação física. Com a supervisão de um endocrinologista, passou a tomar uma injeção de testosterona por mês. Uma cirurgia retirou todos os órgãos sexuais femininos de Régis. Conforme a barba­ crescia e a voz engrossava, sua situação piorava entre os colegas de farda. “A convivência era delicada porque a guarda é extremamente machista. Até hoje, é frequente agressões contra travestis”, afirma Régis. “Um dos guardas chegou a me dizer que, se ele fosse Deus, pessoas como eu seriam queimadas na fogueira.” Para testá-lo, os colegas começaram a exigir resultados exemplares nos testes físicos obrigatórios. “Ficavam dizendo que era na corrida que eles queriam­ ver se eu era macho mesmo.” Régis corria mais rápido do que quase todo o pelotão, o que não é exigido de mulheres. Chegou a completar os testes com o pé torcido. “Melhor isso do que aguentar as piadinhas.” Quando pediu aos superiores para que seu nome na farda passasse de Márcia Regina­ para Márcio Régis, a situação se complicou. Ele chegou a sofrer sete processos administrativos ao mesmo tempo. “Eram todos sem motivo. Fui exonerado com a ­justificativa de que eu era incompetente. Mas a guarda nunca conseguiu provar isso e acabei readmitido por mandado judicial”, diz Régis, que nunca quis deixar a farda. Reincorporado ao trabalho, em vez de Regina, passou a sustentar Vascon, seu sobrenome, na farda. Ainda assim, o comando nunca permitiu que ele usasse o banheiro masculino em vez do feminino. “Eu ia na cara de pau mesmo.”

http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/0,,EMI318326-17737,00-TRANSEXUAIS+O+DRAMA+DE+HOMENS+QUE+NASCERAM+EM+CORPO+DE+MULHER.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário